Marisa, 38 anos, foi condenada a doze anos de prisão por ter assassinado o marido. Quando eu trabalhava como psicóloga no Sistema Penitenciário, pude entrevistá-la e ouvir sua história. Chorando muito, contou que morava com ele, a filha adolescente e a mãe idosa. Era comum ele chegar em casa à noite e, por qualquer motivo, espancar as três. Sempre que, desesperada, ameaçava chamar a polícia, ele ficava ainda mais violento. Não foram poucas as vezes em que terminava uma surra esfregando cocô de cachorro no seu rosto. Não suportando mais, Marisa decidiu agir. Colocou estricnina na comida dele.
Histórias dramáticas como essa existem em todo o mundo. Estima-se que nos Estados Unidos a violência contra a mulher ocorra em pelo menos 3,4 milhões de lares! E o FBI divulgou que três em cada quatro mulheres podem esperar ser alvo de pelo menos um crime de violência durante a vida.
E como agora, todos sabem, alguns países mulçumanos fundamentalistas defendem a crença de que as mulheres têm mesmo que ser dominadas, desvalorizadas e escravizadas. Durante o regime talibã, no Afeganistão, por qualquer motivo as mulheres podiam ser espancadas ou executadas. As meninas não podiam ir à escola; as mulheres não tinham permissão para trabalhar ou andar pelas ruas sem a companhia de um parente do sexo masculino. Além disso, elas não tinham forma nem rosto. O uso da burqa, que as cobre da cabeça aos pés, transformou essas mulheres em fantasmas assustados.
Você já parou para pensar por que existe tanta opressão contra as mulheres? Nos últimos três mil anos, assistimos sob diversas formas e em vários lugares ao domínio do homem sobre a mulher ser levado ao extremo. O valor atribuído pelas religiões à virtude sexual contribuiu inevitavelmente para degradar a posição da mulher. Sendo vista como tentadora, todas as oportunidades de levar o homem à tentação tinham que ser reduzidas. As mulheres respeitáveis eram cercadas de restrições, e as pecadoras eram tratadas com desrespeito e insultos.
A ideia da guerra dos sexos e de que homem e mulher são inimigos foi reforçada por vários textos que aconselhavam os homens a tomar distância em relação àquela que, por vezes, poderia até ser chamada de companheira. O Mahabharata — epopéia que faz um apanhado de crenças e lendas indianas ligadas ao vishnuísmo — apoia completamente essas ideias. “Nunca existiu nada mais culpado do que uma mulher. Na verdade, as mulheres são raízes de todos os males.” (38.12). “O Deus do vento, a morte, as regiões infernais (...) o lado cortante da lâmina, os venenos terríveis, as serpentes e o fogo. Todos coabitam harmoniosamente entre as mulheres.” (38.29).
A origem da má natureza feminina seria uma sensualidade desenfreada, impossível de ser satisfeita por um só homem. “As mulheres são ferozes. São dotadas de poderes ferozes (...). Nunca são satisfeitas por somente um ser do sexo oposto(...). Os homens não deveriam absolutamente amá-las. Quem se comportar de outra forma estará certamente correndo para sua perdição.” Os padres da Igreja a associavam a serpente e a satã.
Ela aparece com frequência nos sermões da Idade Média: “A mulher é má, lúbrica tanto quanto a víbora, escorregadia tanto quanto a enguia e, além do mais, curiosa, indiscreta, impertinente”. No século XII, o bispo Etienne de Fougère, falando sobre as mulheres, exortava os homens “a mantê-las bem trancadas. Entregues a si mesmas, sua perversidade se expande; elas vão procurar satisfazer seu prazer junto dos empregados, ou então entre si”.
O porquê de tanto medo e desconfiança das mulheres é explicitado em dois textos escritos por teólogos muçulmanos nos séculos XII e XV, ainda hoje populares. Alguns afirmaram que o apetite sexual da mulher é superior ao do homem. “Parece que, copulando-se noite e dia, durante anos, com a mesma mulher, jamais ela consiga atingir o ponto de saturação. Sua sede de copular nunca é saciada.” Ela é associada a uma vagina-ventosa que nunca está satisfeita. A cópula agiria diferente nos dois sexos: desabrocharia a mulher e enfraqueceria o homem. Na análise que faz desses textos, a escritora árabe Fatna Ait Sabbah conclui que os únicos machos equipados para fazer frente a essa “mulher-fenda-ventosa” não sejam humanos, mas animais, o burro ou o urso, cujos pênis correspondem melhor aos desejos femininos.
Superior/inferior, dominador/dominado. É evidente que a maneira como as relações entre homens e mulheres se estruturam — dominação ou parceria — tem implicações decisivas para nossa vida cotidiana. As mulheres são consideradas inferiores aos homens e se submetem à sua dominação. A imagem da mulher respeitada é trocada pela de simples objeto, que serve ao homem apenas para lhe dar prazer sexual e filhos legítimos. Sendo propriedade dele, puni-la severamente ou mesmo matá-la é considerado simplesmente o exercício de um direito.
Contudo, não é nada fácil para o homem corresponder ao ideal masculino de força, sucesso, poder, que a sociedade patriarcal lhe exige. Homens e mulheres têm as mesmas necessidades psicológicas — trocar afeto, expressar emoções, criar vínculos. A questão é que perseguir esse ideal impede a satisfação das necessidades, e a impossibilidade de alcançá-lo gera frustração. Está aberto o espaço para a violência masculina no dia-a-dia. Essa idéia se confirma quando os estudos mostram que a violência contra as mulheres não é a mesma em todos os lugares. É muito maior onde se cultua o mito da masculinidade.
Texto de Regina Navarro
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